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domingo, 23 de agosto de 2009



A HISTÓRIA DE SAKASHIMA



— Vamos todos morrer —, Hojo disse calmamente — por isso não adianta nos escondermos.
As chamas que dançavam na fogueira iluminavam a sua face com luz tremeluzente enquanto ele olhava para cada um dos outros.

— Sei que Sakashima está nesta fortaleza, e nós somos os últimos sobreviventes. Descobrirei qual de vocês é ele. Você poderia me poupar o trabalho e revelar-se agora mesmo.

Um rugido bestial ecoou de algum lugar fora da sala e as paredes tremeram, com isso uma chuva de poeira fina verteu do teto.

Keimi, trêmula, se envolveu com mais força em seu kimono sujo e esfarrapado que outrora fora o galante uniforme da aluna de Minamo.

— Não acha que se sentiria melhor enfrentando o seu fim sob a luz da verdade?
A face de Saite não se alterou – isso raramente acontecia –, mesmo quando as terríveis possibilidades do grupo esfarrapado ficaram claras. Era como se permanecesse imutável no olhar estóico e escamoso de todos os orochis.

— Não acredito em você — rosnou Niseno.

A essa altura, a pintura no seu rosto, que o identificava como um xamã yamabushi, já havia há muito sido apagada por seu suor, que mesmo agora escorria por seu peito nu.

— Nós estamos prestes a ser aniquilados, e você está preocupado com um inimigo fantasma que provavelmente fugiu há muito tempo, como qualquer ser racional?

— Eu sei que ele está entre nós — contestou o capitão samurai com frieza. — E é meu dever encontrá-lo.

— Dever — repetiu Focinho-Negro, incrédulo.

Os pulsos do nezumi torciam-se em seus grilhões, enquanto ele se arrastava dolorosamente palmo após palmo na direção do fogo.

— O seu dever irá nos resgatar deste inferno antes que os kamis nos matem a todos? O seu dever irá satisfazer o seu senhor, que provavelmente está morto há muito tempo? Ou será que o seu dever irá nos alimentar e nos dar água para que possamos esperar até os imortais fecharem o cerco sobre nós? Diga-me, samurai, para que serve o seu dever exatamente?
Hojo abriu sua boca e depois a fechou novamente. Levantou-se e saiu da sala sem pronunciar nenhuma outra palavra.

O orochi lançou um olhar vazio para o nezumi, e então levantou para seguir o humano que se afastava. Niseno riu com desdém.
— Belo discurso, para um rato.
— Cale a boca.

Estou estranhamente calmo, apesar das circunstâncias.
Sakashima, digo para mim mesmo, você já esteve em situações piores que esta.
É claro que, quando eu realmente penso sobre isso, me sinto pressionado a citar pelo menos uma. Por isso, tento não pensar sobre isso.

Dizem que antes de morrer a sua vida passa diante de seus olhos. Se isso for verdade, então este não é um bom presságio para mim.

Lembro-me de Natsumi, ela tinha mais ou menos a minha idade quando chegou ao orfanato onde eu vivia. Nós brincávamos juntos, pescávamos juntos, às vezes dividíamos uma tigela de arroz, nada de especial. Num dia tedioso, de repente percebi uma coisa: Natsumi na verdade parecia um pouco com um menino. Naquela época, eu não sabia que muitas crianças de cinco anos de idade pareciam um tipo de pré-humano sem gênero definido, mas, para a minha jovem mente, essa foi uma grande e importante revelação.

Lembro-me de examinar o meu reflexo no rio e pensar que, se cobrisse meu rosto com um pouco de lama e penteasse meu cabelo da maneira certa, eu poderia ficar igualzinho a Natsumi.

Eu entendo porque os cozinheiros do orfanato ficaram extremamente confusos quando Natsumi teve sua crise, chorando porque não tinha recebido nenhuma bola de arroz. Eles juraram para a governanta que tinham dado uma para ela havia apenas alguns minutos. Natsumi teve que ir para a cama sem jantar por ter mentido e por causa de seu ataque de cólera. Eu me senti um pouco culpado, mas só um pouco. Oras, eu estava com duas bolas de arroz.

Apenas o crepitar da fogueira perturbava o pesado silêncio que envolvia a sala.
Keimi olhou para Niseno e Focinho-Negro, os seus olhos marejados e cheios de perguntas. Os seus lábios se abriram, mas nada saiu deles.

O yamabushi sorriu.

— Qual é a sua pergunta, pequena?

— Aãn… Nada importante — ela respondeu num tom de sussurro.

— Eu só estava me perguntando quem seria esse
Sakashima que o capitão mencionou.
Focinho-Negro bufou.

— Um tormento e um ladrão.

— Ah! Se um nezumi fala isso de alguém, você pode ter certeza de que ele deve ser mau mesmo — riu Niseno.

Ele se voltou novamente para Keimi, a expressão subitamente séria.

Sakashima é um tipo de espectro, só que ele é real. Dizem que é um mestre do disfarce, que ele se disfarçou até de kitsune e andou entre os soratamis como um deles. Ninguém sabe porque faz isso, ou quais segredos descobriu, mas ele é bom no que faz. Tão bom, que a maioria do seres, até mesmo os kamis, o temem.
Keimi observava com os olhos arregalados.

— Ele enganou os soratamis? Não sabia que isso era possível!

— Nem eles sabiam, e é por isso que eles o odeiam tanto.

— Como é que ele faz?

— Ninguém sabe ao certo. Provavelmente envolve alguma mágica complexa. Mas se ele está aqui, eu quase não consigo culpar Hojo por sua paranóia.

O silêncio tornou a cair sobre nós. Ele fazia cócegas nas gargantas, exigindo que falássemos, mas ao mesmo tempo nos sufocava.

— Vocês acham que sairemos a salvo daqui? — Keimi perguntou, como se as palavras tivessem sido arrancadas de dentro dela.
Ninguém respondeu.

Será que eu conseguiria? Seria eu, o grande
Sakashima, capaz de sair daqui, disfarçado como um kami? Provavelmente.

Mas com aquela horda imensa aos portões, apenas esperando para destruir qualquer coisa mesmo que remotamente mortal, não posso arriscar. Idiota!

Não acredito que eu pensei que seria fácil me infiltrar nesta fortaleza! Eu sabia muito bem o que acontecera a apenas alguns quilômetros daqui, em Eiganjo. Mas eu achei que com os homens de Konda dizimados pelo O-Kagachi e os kamis fora procurando seus prêmios, seria moleza, certo? Idiota!

Entrar foi fácil, como eu esperava. Aqueles estranhos soldados e refugiados que continuavam vivos estavam distraídos demais com todos os corpos que os kamis deixaram para trás. Além disso, meu disfarce é muito bom, se é que eu posso dizer isso sem me gabar. Mas não acredito que eu não tenha previsto que aquela legião de kamis estivesse espreitando as redondezas!

Se não fosse por aqueles selos protetores (porque eles não estavam erguidos quando O-Kagachi apareceu pela primeira vez?), nós todos estaríamos mortos. Mas quem sabe quanto tempo eles irão agüentar contra aquele exército lá fora? E, para piorar as coisas, eu acabarei morrendo sem ter encontrado a informação que vim aqui procurar.
Idiota!

Os dedos de Hojo deslizaram sobre os portões de ferro frio da fortaleza, acariciando os parafusos e entalhes, o enorme sinete pintado com sangue na superfície. Tentou lembrar-se por um momento a quem pertencia aquele sangue. Ah, sim, o mago kitsune… Ele ainda não tinha certeza se o mago estava mentindo quando afirmou que suas feridas, do qual o sinete jorrou, não foram infligidas por ele mesmo.

Ele considerou as opções: a fortaleza estava cercada por montanhas pelos dois lados – bom para a defesa, não tão bom para uma fuga. Mas nenhuma força do daimyo esperava que uma força esmagadora como essa fosse cercá-los. Um dos portões estava enterrado sob um deslizamento de rochas induzido por um kami, por isso só restava o portão a sua frente, com uma legião de kamis vigiando e aguardando.

Foi somente um leve sussurro, quase abafado pelo ruído inumano do outro lado do portão. Mas foi um sussurro. Hojo virou-se, já desembainhando a sua katana… Saite ficou parado, a sua face de réptil ainda relaxada e passiva. Hojo relaxou, embainhando sua arma.

— Oh, é você.

— Eu estava… ah… verificando os selos protetores. É provável que fiquemos aqui por um tempo, então é vital que as proteções mantenham os kamis para fora o maior tempo possível.

— Claro — Saite respondeu, num tom que o samurai quase desconfiou conter um vestígio de dúvida.

— Você realmente acha que deveria se preocupar tanto com
Sakashima?

— Como disse, fui encarregado pelo próprio Daimyo de encontrá-lo. E cumprirei as minhas ordens.

— Mesmo que seu senhor esteja morto?

— Especialmente se meu senhor estiver morto — veio a resposta categórica.
Os olhos de Saite brilharam.

— Então você não tem mais esperança?

— Não! Mas…

Antes que Hojo pudesse continuar, o portão tremeu. Uma sinfonia penetrante de gritos explodiu do outro lado.

O selo de sangue reluzia com um brilho branco ofuscante enquanto toda a muralha da fortaleza se encrespava. Mas a proteção vacilou, voltando, por apenas um momento, a ser do mesmo vermelho que era alguns segundos atrás.

Aquela leve flutuação foi o suficiente.

Um longo kami em formato de serpente passou pelo portão naquele instante, as suas dúzias de olhos cheios de ódio e seu estômago pingando veneno. As suas escamas de ébano brilhavam sob o luar, enquanto esferas imperfeitas de lama brilhante do pântano orbitavam o seu corpo.

Hojo sacou sua katana e Saite seu arco. O kami sibilou em expectativa.
Com um movimento incrivelmente rápido, Saite colocou a flecha no arco e disparou.
O kami gritou, recuando com dor e raiva.

Hojo atacou, desferindo três golpes extremamente velozes, entrecruzando o corpo do kami com listras descoloridas.

Outra flecha se seguiu, depois outra e mais outra, disparadas mais rápido do que o olho de Hojo era capaz de discernir.

O kami caiu para trás, a sua cabeça pendendo erraticamente.

Silenciosamente, Hojo deu uma passo para frente e o golpeou. A cabeça do kami balançou duas vezes antes de desaparecer num lampejo de energia espiritual. O corpo, rapidamente, teve o mesmo destino.

Hojo suspirou.
— Você acha que mais algum conseguirá passar?

— Sei que sim — respondeu Saite calmamente.

O samurai meneou a cabeça.

— Então precisamos escapar deste lugar.

— Mas como? A zombaria dos kamis que os cercavam foi a única resposta.

Nós cinco estamos em volta da fogueira novamente. Que bando de gentalha.
É curioso o tipo de pessoa que consegue sobreviver a uma catástrofe como essa.

Nós nunca nos associaríamos se tivéssemos escolha, ou se a situação não fosse tão implacável. Mas o fato de sermos os únicos sobreviventes, agarrando-nos à vida com as pontas dos dedos, tem um estranho efeito agregador.

Acredito que não há mais nenhuma razão para continuar com a charada, mas não consigo evitar. Força do hábito.

Além do mais, eu posso precisar das habilidades que este disfarce me proporciona. Certamente não fará mal a ninguém.

Sob o manto de ilusão que contém meu disfarce, ninguém pode ver minhas máscaras. Humano, ogre, kitsune… Posso colocar qualquer uma delas e me tornar outra pessoa. Aprendi, tempos atrás, que isso não é nem um pouco diferente do que a maioria das pessoas de todos os lugares faz todos os dias.

Quando coloco uma delas, eu esvazio minha mente, transformando-me num pergaminho novo, esperando ser escrito. Não é a máscara que altera minha forma – superei esses acessórios amadores há muito tempo.

Ela é um foco para o disfarce real: transformar-me mentalmente em meu alvo, para que eu possa projetar essa imagem para os outros. Eles me enxergam como me vejo, então mergulho na minha nova identidade como em uma fonte aquecida.

É feitiçaria, atuação e um pouco de instinto embrulhados juntos numa embalagem aparentemente simples.

Na verdade não é assim. Eu faço com que pareça fácil.
Uma outra coisa está pendurada no meu cinto: um pequeno símbolo, com o timbre da família
Sakashima gravado nele.

Ele prendia a trouxa na qual eu estava embrulhado quando fui entregue ao orfanato. Mantenho-o comigo sempre, como lembrança de quem realmente sou, e de quem ainda poderei vir a ser.

— Será que conseguiríamos deixar os kamis para trás?

— Não é muito provável. Alguém conhece alguma mágica que poderia permitir que escapássemos?

Keimi balançou sua cabeça.

— Eu tenho um amuleto de Minamo que lança uma mágica de teleporte, mas só restam mais duas cargas. E o efeito tem um apenas um alcance pequeno.

— Não poderíamos enfrentar todos logo de uma vez? — bradou Hojo com frustração.

— A maioria dos que estão lá fora são kamis inferiores. Entre nós cinco, poderíamos…

— Destruir talvez um quarto deles — Saite interrompeu calmamente. — E depois ser aniquilados pelo restante.

O silêncio se seguiu, cada rosto congelado, com pensamentos desesperados e desencontrados.

Focinho-Negro rosnou, e olhou ferozmente para o orochi.

— Como pode estar tão calmo numa hora como esta? Você não sabe que vai morrer?

— E você não? retrucou Saite displicentemente.

— Claro que não! Sobreviverei de algum jeito, mesmo que seja sobre os corpos de cada um de vocês! Mas olhe para você! Você está sentando aí como se estivesse esperando o chá da tarde! Não tem medo da morte?

— Cale a boca! — Niseno falou bruscamente.

Focinho-Negro balançava para frente e para trás, torcendo as cordas que o prendiam.

— Reaja, serpente! Mostre um pouco de emoção! Qualquer coisa! Medo, coragem, não me importo! — Uma longa pausa.

— Maldito, reaja!

Abruptamente, Keimi se pôs de pé e correu para fora da sala. Após um momento de confusão, Hojo levantou-se e a seguiu.

— O que há de errado com ela?

Niseno balançou a cabeça.

— Você me lembra alguém, rato. Alguém com quem eu cresci nessa vila em Sokenzan. Ele estava sempre esbravejando sobre como era bom e corajoso, como conseguia vencer qualquer um que vivia lá, até mesmo os irmãos Yamazaki.

— Você está me chateando, humano.

— Claro, quando os kamis vieram mesmo até a vila, ele desapareceu. Puf. Os kamis destruíram tudo naquele dia. E os sobreviventes, inclusive eu, demoraram apenas um mês para encontrá-lo e pendurá-lo pelas tripas por causa da sua covardia.
Focinho-Negro rosnou.

— Você está me ameaçando, yamabushi?

— Apenas contando uma história. Peixe? — Ele enfiou um palito com um pouco de carne seca na cara de Focinho-Negro.

O nezumi recuou.
Niseno deu de ombros.
— Azar o seu.

Ficou olhando para Saite enquanto comia. O orochi poderia muito bem passar por uma estátua.

Foi sempre tão fácil. A primeira vez que penetrei num templo, fingindo ser um kami inferior, meu coração estava batendo forte. Na verdade, eu estava com medo que alguém me questionasse, me confrontasse. Quando saí, com os sacerdotes ainda se curvando em reverência enquanto eu fugia, continuava com medo.

Não fico nervoso há anos.

É lógico que poucas pessoas prestem atenção numa jovem passando na estrada, ou no pastor tomando conta do seu gado. Mas, imagina-se que os samurais do daimyo iriam estranhar mudanças de comportamento em seu general, ou que os monges de Jukai iriam questionar por que, subitamente, seu mestre profundamente espiritual exigiu um quinto de sua colheita recente.

Mas eles nunca o fazem.

Essa foi a primeira coisa que tive que aprender para me tornar mestre na arte.

As pessoas querem ser enganadas. Elas querem acreditar em seus olhos, acreditar que seus companheiros são o que aparentam ser. Não querem pensar sobre os monstros que podem estar ocultos abaixo da superfície, mais terríveis que o kami mais vingativo. Além do mais, aqueles que não conhecem a si próprios não podem conhecer aos outros. E existem muitos por aí que não conhecem a si mesmos – ou que não se importam em conhecer.

Tentei entrar em lugares mais difíceis e secretos, apenas pelo desafio.

O Honden do Alcance Noturno?
Simples.

O povoado mais recôndito dos akkis? Eu bocejei o caminho inteiro.

A sala do trono do Daimyo Konda? Foi quase embaraçoso, tamanha a facilidade.

Com o tempo, eu comecei a introduzir pequenos deslizes nos meus atos, dando àqueles a minha volta a chance de me descobrir devido a um erro. Isso também não ajudou.

O que sobra então?

O próprio kakuriyo? Enganar os kamis?

Talvez eu o faça, algum dia. Talvez eles não me desapontem.

Qual! Provavelmente eles também o farão.

Hojo a encontrou no que costumava ser a sala do comandante do forte, caída sobre uma mesa.

As costas de Keimi sacudindo por causa dos soluços e o seu rosto enterrado em suas mãos.
Hojo ficou parado na porta, mudo, por um longo momento. Ele tossiu, e as costas da estudante de Minamo endireitaram-se imediatamente.

— Arrã… Desculpe… Queria saber se você estava bem.

— Não, não, eu é que deveria pedir desculpas — Keimi fungou, limpando seu rosto com a manga. — É que… estou com medo.

Ela se levantou da cadeira e foi até uma janela, a luz da lua brilhando em seu rosto banhado em lágrimas.

— Eu… eu quase não consegui escapar de Minamo. Minha amiga Nozomi salvou a minha vida. Ela já havia ajudado muitas pessoas a escapar. Como os seus outros amigos, até mesmo aquele que não conseguia se mover sozinho, ele estava balbuciando tanto... Eu era a última. Um pouco antes de me desvanecer, eu vi um ogre andando atrás dela… Tentei gritar, avisá-la, mas… — Outra lágrima escapou e escorreu por sua face tão lisa como uma pétala de rosa. Ela a enxugou rapidamente.

— Estou tentando ir para casa. Nem sei se meus pais estão vivos, mas não tenho nenhum outro lugar para ir. Quando soube que Eiganjo estava sendo atacada, pensei que estaria a salvo aqui. — Ela riu amargamente, um som inadequado saindo de uma garganta como aquela. — Agora parece que Nozomi morreu por nada.

Hojo foi em direção à garota, mas rapidamente recolheu seu braço.

— Você não pode pensar dessa maneira — ele disse por fim. — No momento em que você admitir que está perdida, você realmente estará. — Uma expressão de surpresa passou por seu rosto, como se tivesse se espantado com suas próprias palavras.

— Todos precisamos nos manter capazes de pensar com clareza para podermos escapar daqui. Você também. Se morrermos, devemos morrer sabendo que fizemos nosso melhor para sobreviver.

— Mas o que posso fazer? Nunca fui uma boa aluna. Não conseguia fazer muitas das coisas que meus amigos faziam. No que eu poderia ajudar?

— Você é uma aluna de Minamo. Eles não deixam idiotas imprestáveis entrar em Minamo. Agora, tente se lembrar. Você deve ter aprendido algo útil em seus estudos.

As lágrimas cessaram. A face de Keimi se crispou com o esforço para se concentrar.

— Eu não… Espere… Acho que lembro de uma mágica…

— Sim…? — A face do samurai iluminou-se visivelmente enquanto ela a descrevia.

— Excelente! Esta é a chave para a nossa saída!

Keimi balançou sua cabeça, infeliz.
— Não. O alcance é limitado… Eu teria que estar praticamente no centro da horda para que ela fizesse algum efeito. Eles me matariam num piscar de olhos.

— Talvez não. Acho que tenho um plano…

Nunca fui um aluno talentoso. Nem era muito bom em arte, esgrima ou feitiçaria. A melhor palavra para me descrever nas coisas que fazia era “mediano”. Não muito ruim, mas também não muito bom. Resumindo, nunca me destaquei realmente. Não que eu fizesse muita questão disso.

Mas é que eu já via todo meu futuro com clareza diante de mim: provavelmente seria aprendiz de algum mercador ou viajante, aprenderia o suficiente para começar meu próprio negócio, viveria uma vida confortável. Com certeza eu moraria numa pequena vila, casaria e teria muitos filhos.

Eu morreria e deixaria um negócio modesto para meus herdeiros. E nada mais. Todo meu mundo seria aquela vila, aquele negócio. Eu passaria a vida perdido num mar de rostos, e em um mar maior ainda de lápides na morte.

Meu rosto, minha memória, todas as minhas realizações se tornariam poeira no monte de cinzas da história. Se isso que chamam de inferno realmente existe, então essa era a descrição.

Mas, se esse era o meu destino inescapável, como poderia evitá-lo? Passei longas tardes ponderando sobre essa questão, à sombra de uma cerejeira perto do orfanato.
Por anos, não obtive nenhuma resposta. Mas uma tarde, lembrei-me de Natsumi, e finalmente percebi…

Talvez
Sakashima não pudesse mudar seu destino. Mas quem disse que eu deveria permanecer como Sakashima?

Os outros estavam olhando para Hojo – Keimi com medo, Focinho-Negro com nojo, Niseno com uma estranha mistura de dúvida e espanto, e Saite com a sua falta de expressão usual.
— Audacioso — disse Niseno finalmente. — Eu gosto.

— Eu acho que é suicídio — Focinho-Negro murmurou.

— Também é suicídio esperar que os kamis passem pelas proteções — disse Saite. — Não sei quais as chances de sucesso, mas não acho que temos outra escolha.

— É ridículo! — o nezumi insistiu. — Impossível! Primeiro, como a garota irá chegar longe o suficiente no meio da horda para completar a sua mágica? O que ela irá fazer, passar entre os kamis?

Um leve sorriso se formou no rosto de Hojo.

— É aí que você entra.

Focinho-Negro piscou.

— Eu?

— Viajei muito em minha busca por
Sakashima, aprendi muitas coisas. Uma delas é reconhecer certas… qualidades. — Hojo fez uma pausa conforme o nezumi se contorcia, aborrecido.

— Você é um ninja, não é? Bando de Okiba? É por isso que você viajou para tão longe de Takenuma – ouvi dizer que o Devorador de Entranhas começou um expurgo dos seus recentemente.

O nezumi se contorceu mais forte.

— E se eu for? O que isso tem a ver com todo o resto?

— É a chave para a nossa sobrevivência.

Dito isso, Hojo desembainhou sua wakazashi e se aproximou do nezumi que arregalou olhos. Com um golpe experiente, as amarras de Focinho-Negro caíram. O ninja passou a mão em seus pulsos, e arreganhou os dentes.

— Tem certeza de que queria fazer isso?

Hojo deu de ombros.

— Você até poderia, eu suponho, fugir furtivamente, deixando o restante de nós aqui para morrer. Mas não acho que você o fará. Não porque se preocupa conosco, mas porque você sabe que talvez não consiga desviar dos kamis o tempo necessário para escapar ileso. O meu plano oferece uma chance bem melhor de sobreviver do que qualquer coisa que você pudesse fazer sozinho, e você sabe disso.

— Você presume demais, samurai — Focinho-Negro respondeu. — Eu deveria ir embora agora.

— Então vá em frente. Não vou impedi-lo.
A sala congelou.

A maioria das pessoas me odeia. O problema delas é que não conseguem agüentar uma mísera brincadeira.

Esse é o problema da guerra – ela deixa todos muito sérios. Eles nunca aprendem com o que eu faço. Apenas se irritam e descontam toda a sua ansiedade e raiva em mim, nunca refletindo se também não precisam de uma mudança.

Chinsen era diferente. Percebi desde o momento em que ele descobriu que eu não era o seu aprendiz que viera entregar alguns pergaminhos para o seu colega jushi.

Ele riu e elogiou a minha bravata. Depois começou uma extensa e detalhada crítica de como eu poderia ter melhorado meu embuste. Não lembro se foi nesse exato momento que me ajoelhei, implorando para que ele me ensinasse.

Acho que deve ter sido. Não foi o meu momento mais digno, reconheço, mas é um do qual nunca me arrependi.

Estava claro, para começar, que eu tinha ido até onde era possível com máscaras e maquiagem. Foi Chinsen que me ensinou a arte do pergaminho em branco, de como se tornar em nada para que se possa moldar seu pensamento e forma em algo totalmente diferente.

Conforme eu me tornava mestre pouco a pouco nesta arte, percebi um dia que meus traços estavam se tornando indistintos. Eu estava um pouco curioso, mas não preocupado. Mesmo quando eles derreteram de vez, transformando minha face numa lousa limpa, eu não me preocupei.

Chinsen sorriu quando viu o que estava acontecendo. Era um sinal, ele disse, de que minhas habilidades estavam quase em seu máximo. O engraçado é que não sinto muita falta do meu rosto.

Assim como a maioria não veste as mesmas roupas o tempo todo, eu me pergunto como os outros conseguem ser a mesma pessoa, com o mesmo rosto, dia após dia, quando há tanto para explorar…

— Sabe, acho que isso pode até funcionar. — Niseno levantou sua cabeça enquanto observava Hojo afiar sua espada.

Os outros estavam em outro local, preparando-se física e mentalmente para o desafio que se seguiria.

— Estou impressionado, samurai. A maioria dos homens de Konda iria simplesmente investir contra os kamis com suas katanas em punho, especialmente se isso resultasse em algum tipo de morte gloriosa.

— Bom, eu não estou pronto para morrer hoje — Hojo disse, sem olhar para cima.

— E isso é uma mudança, não é?

O som de pedra de amolar contra metal cessou abruptamente.

— Não fique tão surpreso assim. Percebi desde o começo. Enquanto você estava se divertindo por aí, perseguindo
Sakashima, os seus amigos e companheiros estavam morrendo nas mãos de O-Kagachi. Deve fazer um homem se sentir culpado, né? Como se ele devesse ter morrido com seus companheiros?

— Sim… — Hojo murmurou, numa voz que não era sua.

— Estou feliz que tenha ouvido o seu instinto de sobrevivência e percebido. Este seu plano é inspirado em algo insano. — Niseno ficou em silêncio por um momento. — O que acha de Saite?

— Oh, ele conseguirá cumprir a sua parte do plano bem o suficiente.

— Não é isso que estou perguntando. Nunca vi um de sua raça antes de hoje. O que você acha que ele está fazendo tão longe de Jukai?

— Ele me disse que tinha apenas desejo de viajar, vontade de saber o que existia além das fronteiras da floresta.

Niseno sorriu.

— Não sabia que esse tipo de impulso existia num orochi.

— Nem eu…

A porta se abriu. O objeto de sua especulação estava à porta, com Focinho-Negro e Keimi a seu lado.

— Estamos prontos.

Suponho que estar nesta situação seja completamente culpa minha. Sempre quis aventura.
Por que outro motivo eu faria uma coisa tão tola como andar pelo Palácio Oboro como se pertencesse àquele lugar? Para saber o que os soratamis almoçam?

Na verdade, a resposta para essa pergunta é bem interessante, provavelmente mais interessante do que o segredo que os cidadãos da lua acham valioso. Segredos militares, paixões secretas, conspirações bem planejadas… Tudo isso perde o valor em comparação aos atos mais simples… como viver.

Lembro-me de uma coisa que Chinsen me disse uma vez.

— Você é capaz de ver através de cem mil pares de olhos — ele disse, — andar com cem mil pares de sandálias. Espero que perceba que dom maravilhoso é esse.

Ele estava certo. Demorou anos para que eu percebesse isso, mas maldito seja, ele estava certo.

Foi surpreendente, a primeira vez que realmente mergulhei em outra pessoa, como o mundo mudou. Foi como se cada um de nós vivesse num planeta diferente, cada um assemelhando-se com o outro superficialmente, cada um construído através de anos de memórias e experiências completamente únicas.

Cada ser é uma rica tapeçaria de sonhos, desejos e mágoas, um conto de triunfo e tragédia que nunca termina. E eu sou um leitor voraz.

Viver em Oboro foi uma grande experiência.

Pela primeira vez, pude ver porque os soratamis são como são. Olhar desde o alto para a terra lá embaixo, de onde até mesmo Eiganjo parecia uma bagunça de brinquedos deixados para trás por uma criança descuidada…

Ver e experimentar o poder que controlam, a maneira pela qual eu conseguia fazer tanto a forma quanto o pensamento dançarem ao menor capricho… Eu passava tardes inteiras mudando uma flor de lótus, observando-a mudar de cor e forma conforme eu a manipulava como a um fantoche.

Eu precisei fazer uma verdadeira viagem para voltar a ter os pés no chão, com a terra se desfazendo entre meus dedos e o sol aquecendo meu rosto, para lembrar quem eu realmente era.

Passei duas semanas como um fazendeiro humilde trabalhando em Araba. Acredito que tenha sido uma espécie de penitência para me trazer de volta à realidade. Mas eu não trocaria o tempo que passei nas nuvens por nada. Nem mesmo pela maior jóia de kakuriyo.

A horda de kamis percebeu a presença dos mortais pela primeira vez quando os portões da fortaleza norte se abriram e o samurai apareceu, espada em punho.

Rindo interiormente de sua tolice, o exército avançou, agradecido pela chance de destruir os arrogantes.

A katana brilhou e kamis foram abatidos, mas outros avançavam, passando por cima de seus semelhantes caídos.

Mas então o orochi apareceu, no flanco do portão noroeste, surgido de uma mágica de teleporte dos mortais. O exército de kamis pensava como um, e uma parte deles imediatamente parou de avançar e foi em direção ao orochi, que já os estava abatendo com uma saraivada de flechas.

O yamabushi apareceu num piscar de olhos no portão nordeste, surgido da mesma mágica de teleporte. Alguns dos kamis gritaram de medo, mas um terço da horda começou a mover-se em sua direção. Além do mais, ele era apenas um, e eles muitos. Talvez alguns morressem, mas o restante iria vingar essas vítimas cem vezes.

Assim, o exército se dividiu em três, como a massa de mochi sendo separada em três partes. Um espaço vazio surgiu no centro da horda, um espaço que se tornava maior conforme os grupos começaram a rodear os mortais.

Foi no meio desse caos de sangue, aço, feitiços e flechas que Focinho-Negro investiu através dos agitados kamis, o suor enrolando o seu pêlo.

Todos os nervos tensos, todos os músculos queimando, e as suas habilidades de ninjutsu no limite enquanto ele ziguezagueava pelo exército, aparecendo somente por um instante antes de desaparecer novamente. Finalmente, ele alcançou o centro e gentilmente depositou sua carga no chão.

Keimi precisava de apenas um momento para fechar seus olhos e organizar seus pensamentos.

Se alguns dos kamis mais poderosos tivessem prestado atenção, teriam visto ondas de energia mística fluírem da garota, em direção à batalha ruidosa. Mas eles só perceberam quando as correntes espirituais que os prendiam ao utushiyo sumiram, levando suas formas de volta para o reino etéreo.

Os kamis gritaram de desespero e raiva, mas era apenas um gesto instintivo, enquanto desapareciam do plano material.

Passados alguns momentos, apenas cinco mortais suados permaneciam no platô, olhando uns para os outros sem poder acreditar.

— Não acredito — Focinho-Negro sussurrou. — Realmente funcionou.


— Então para onde foi o nezumi?

O sol estava nascendo, uma visão que enchia Hojo com uma leveza que o deixou espantado.

— Fugiu para algum lugar assim que teve certeza que os kamis se foram — veio a resposta.

— Nós provavelmente deveríamos ficar felizes que ele não decidiu nos matar naquele momento.

— Por que ele se importaria? Conseguiu manter a sua vida miserável. Ele soube parar enquanto estava em vantagem.


Uma pausa.

— E os outros?

— Saite está acompanhando Keimi até sua vila. Eu tenho a minha própria casa para retornar. Prazer em conhecê-lo.

Hojo assentiu com a cabeça. Ele esperou um momento enquanto a figura a sua frente virava de costas e se afastava.

Ele não estava certo do porque – talvez fosse um senso de poesia dramática. Pegou um pergaminho de sua túnica e o segurou em direção à aurora.

— Indo embora sem o documento pelo qual você veio aqui,
Sakashima-sama?

O homem que Hojo conhecia como Niseno parou e virou devagar.

— Acho que não escutei direito.

— Acho que escutou sim. Ouvi o que você disse para o nezumi. Como disse, viajei muito e aprendi muitas coisas. Eu até conheci os irmãos Yamazaki quando eles serviram o daimyo. Sei que a sua vila não sucumbiu aos kamis.

— Você sabe desde aquele momento? Você me impressiona novamente. Então por que não…?

— Isso não era importante, não naquele momento. Suponho que ainda não importe.
Sakashima parou, observando o pergaminho oferecido. Pegou-o e o desenrolou.

— Como sabia que eu estava procurando por isso?

— Apenas um palpite. Eu sabia que o forte não continha nada de valor real, somente suprimentos e informações do censo. Vi o nome e achei que era um bom palpite.

— Bem… Obrigado. — Não houve resposta. — O que fará agora?

— Voltar para Eiganjo, ver o que posso fazer para ajudar. Se o daimyo estiver vivo, e me quiser, retornarei ao seu serviço. Quanto às minhas ordens… Você é um homem difícil de encontrar,
Sakashima.

— Acho que sim.
Hojo acenou em sua direção.
— Adeus.

Sakashima esperou até que Hojo desaparecesse no horizonte, e então voltou sua atenção para o pergaminho. Lá, entre linhas e linhas de registros de nascimento, estava o nome que ele procurava: Kenshi Sakashima.

— Então este é meu primeiro nome — ele murmurou. — Nada mau. Meus pais tinham bom gosto.

Com um sorriso mais largo do que tinha há muitos anos,
Sakashima guardou o pergaminho debaixo de seu cinto.

Talvez fosse para a Fortaleza de Shinka, ser um ogre por um tempo. Ou, quem sabe, visitar os nezumis?

A estrada se abria diante dele e tudo era possível.

Assobiando uma música de viagem,
Sakashima deu o primeiro passo para retomar sua jornada mais uma vez.


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